Pra
ilustrar melhor resolvi contar um pouco dessa minha saga. Sim, porque me
lembrei que meu objetivo é contar minha história e não ser um livro de auto
ajuda.
Dizem que a codependencia tem origem na nossa infância. Então vou contar um pouco do que eu conto nas minhas sessões de terapia.
A
romantização das migalhas.
Era uma vez uma menina apaixonada pelo seu pai. Um amor enorme, sem explicação, que só mesmo o vínculo sanguíneo poderia explicar. Mas esse pai, era um pai um tanto ausente. Nós não o víamos com tanta frequência como víamos minha mãe. Ele trabalhava fora, fazia "plantões", as vezes trabalhava a noite e finais de semana quando não estava em casa nos pedindo para fazer algo como cortar grama, limpar as grades, estava fazendo churrasco, ou vendo corrida de fórmula 1. Todos os dias ele vinha almoçar em casa. Mas era um pai silencioso. Quando falava certamente era pra "educar". Coloquei entre aspas por que tenho certeza que ele realmente acreditava que estava nos educando , mas na verdade recebíamos só como um momento de tensão, com palavras duras, sempre criticando, e essas palavras nos feriam muito. E infelizmente projetou algumas crenças limitantes em nós. Quando falo nós, estou me referindo a mim, ao meu irmão e minha mãe.
Mas
eu era essa menina apaixonada. Sempre achei meu pai muito inteligente. Eu me
parecia com ele fisicamente. Ele me pedia pra coçar a cabeça dele depois do
jantar, e ele fazia cara de que gostava muito. Eu me sentia muito importante.
Depois mais crescida, em alguns momentos que podíamos conversar, sempre
durante as refeições, percebi que eu tinha o poder de debater as idéias dele.
Era mágico ver meu pai escutando o que eu tinha a dizer. Na verdade eu não sei
se ele escutava mesmo, ou só gostava de provocar pra ver minha reação. Mais
tarde ele quis que eu fosse advogada, pois ele achava que eu falava bem. Então
concluí que ele devia me escutar mesmo. Mesmo não concordando e debatendo
comigo. Agente falava em voz alta, era emocionante. Mas só pra mim e pra ele.
Por que minha mãe e irmão sempre viram isso como discussão. Minha mãe odeia que
a gente fale alto.
Bom,
além dessas coisas tinham outras que eu sempre amei no meu pai. Eu sempre amei
a temperatura corporal dele. Ele tinha mãos muito quentes e essas mãos faziam
passar qualquer dor. Eu também gostava muito de abraçar ele, mas ele nem sempre
nos abraçava. No máximo levantava um dos braços e colocava a mão sobre nossas
costas. Ele tinha um jeito durão de falar, uma pose que se fazia respeitar em
qualquer lugar. Então me dava a sensação que ele podia resolver qualquer
problema. E mais uma coisa! Nós , só nós dois, fazíamos contas de um jeito
que só a gente entendia! Uma lógica totalmente inversa. E me divertia muito em
ver como eu era parecida com meu pai.
Bem,
deu pra ver o quanto eu romantizava essa relação. Fato é que toda vez que ele
pegava aquela garrafa de conhaque e se servia misturando com mel, a gente já
sabia que alguém ia sair chorando da mesa.
E
muitas vezes eu ia atrás dele. Ele se sentava numa sala ao lado, no escuro. As
vezes colocava uma música, e eu sentava no sofá da frente. Ficava ali
olhando ele. Esperando alguma brecha pra conversar. As vezes eu falava, mas não
sei se ele me escutava. Mas eu me sentia importante e amada daquela forma.
Éramos cúmplices.
Eu cresci. E de alguma forma, assistir novelas e filmes na tv me fez por um lado romantizar a vida e por outro ver coisas demais.
Eu
já era pré-adolescente. Meu pai sempre quando chegava as férias de verão nos
deixava na casa de praia do meu avó e voltava pra cidade pra trabalhar. A gente
passava as férias com meu avô paterno, minha mãe, e as vezes com meus primos e
tia.
Numa
dessas voltas pra casa eu achei um batom na área de serviço e entreguei pra
minha mãe. Pouco tempo depois encontrei grampos de cabelo com cabelos
compridos no banco de trás do carro, e também entreguei pra minha mãe. Minha
mãe sempre usou cabelo curto. Nessa época meus pai brigavam bastante e eu e meu
irmão sentávamos na escada pra ouvir a discussão.
Em
uma noite, em que minha tia paterna estava em casa, tocou o telefone e eu
atendi. Era um homem, que perguntou se era a casa do Paulo. E eu disse que sim.
Pediu então pra falar com minha mãe. Era o marido da amante do meu pai. Meu pai
não estava em casa, pra variar.
Naquela
noite minha mãe chorou, minha tia tentou acalma-la mas só o que ouvi foi que
minha mãe tinha que tomar alguma providencia.
E
minha mãe tomou. Naquele dia minha mãe foi dormir no meu quarto. Ela pegou uma
parte do estrado da cama que eles tinham e colocou ao lado da minha cama. Dei a
mão pra ela. Ela chorava. Não falamos mais nada.
Minha
mãe queria se separar mas demorou pro meu pai sair de casa. Ele se mudou pra um
quarto no andar de baixo e só saiu de lá quando o oficial de justiça fez ele
sair.
Eles
se separaram, eu tinha 13 anos.
Acho
importante colocar mais algumas coisas:
Nós
morávamos em um sobrado reformado enorme, com um carro grande na garagem, um
barco também. Mas minha mãe e meu pai não tinham cama, tinham um estrado
apoiado nuns tijolos de cimento. Os móveis da minha casa estavam caindo aos
pedaços, os poucos que tinham. A cozinha tinha sido feita e também um armário
no meu quarto. O resto era tudo improvisado. Minha mãe costurava e reformava
minhas roupas e do meu irmão. Ela também costurava as roupas dela. Enquanto meu
pai , se vestia bem, jaqueta de couro, andava em um carrão e viajava em
excursões para pescar, em São Paulo, Pantanal e nem sei mais por onde. Estou
contando tudo isso por que hoje vejo que meu pai se comportava como uma pessoa
tóxica, ou um dependente químico. Hoje acredito que meu pai seja realmente um
dependente químico. Mas eu perdi o contato e convívio com ele, por isso não
posso afirmar. Mas ele, sempre procurou ter o melhor pra si, e nós, nos
virávamos com as migalhas.
Eu persegui essas migalhas por muito tempo, em busca do amor do meu pai. Sentia pena dele. Quando chegava a quinzena do fim de semana pra ir visitá-lo, eu fazia questão de ir. Convencia meu irmão, que nunca queria ir, a ir também. Meu pai sempre com uma namorada nova. Me lembro da primeira vez que ele serviu a namorada com um pedaço do churrasco que ele sempre guardava pra mim. Nós tínhamos um quarto pra cada um na casa dele, com tv e computador. Mas nossos quartos eram no andar de cima. O dele era em baixo e a porta estava sempre fechada com ele e a namorada dentro, e nós pra fora. Depois de um tempo naturalmente eu e meu irmão não queríamos mais ir. E ele sempre nos jogou na cara que nós o abandonamos. Tirem suas próprias conclusões.
Hoje eu não tenho mais contato com meu pai, já fazem mais de 5 anos. A última vez que falei com ele foi quando minha vó paterna faleceu. Nessa época ele já me evitava. Quando eu ia na casa da minha avó, ele nunca estava. Um dia escutei minha avó no telefone, era ele perguntando se eu já tinha ido embora.
Um
dia depois que minha vó morreu eu liguei pra ele. Pra saber como ele estava.
Nesse dia ele disse abertamente pra mim não procurá-lo mais, que ele não queria
mais ser meu pai, que era pra eu fingir que ele estava viajando. Foi a pior dor
que já senti na minha vida. Eu senti o luto por alguém vivo. Eu senti como se
meu pai tivesse morrido, mesmo sabendo que ele estava vivo.
Segue
o que escrevi na época:
O PAI QUE NÃO QUERIA SER PAI
E começaremos pelo fim. Quando finalmente
ele assume e diz: “Me deixa em paz, vai viver a sua vida! Tá bom assim...”
E a filha ainda se preocupa:" Mas pai eu te amo! Sinto saudades!
"
- “Então finja q viajei...”
E a conversa acaba com um "Vá, vá, vá..." e um telefone
desligado na cara...
Fato é que quando erámos bebês, talvez
esse pai gostou de ser pai desses bebês. Mas esqueceu que amor é afeto natural
dos filhos pra um pai que deve ser regado e cultivado. Esse pai cresceu
ausente. Com uma cadeira virada de lado. Cadeira comprada especialmente para na
hora da janta ter essa característica. A de se isolar. Enquanto mãe e filhos
conversavam e riam, pai se virava e preparava sua dose de conhaque com mel. E
junto dela já sabíamos que viriam os berros. " Depois de muito riso vem o
choro" ou seria depois de muito álcool vem a agressividade? Pronto, tinha
feito seu papel de pai. Palavras duras pra cá. Como você não presta pra lá. E
cada um pro seu quarto chorar. E o tempo passou. Dentro da casa enorme de 4
quartos, 3 banheiros, 3 salas, móveis velhos caindo aos pedaços, tênis apertados
e roupas curtas, mas na garagem um barco e a caminhonete imponente. " Já
aprendeu a assobiar? Por que é o que vai ter que saber pra ser lixeiro! Burro
do jeito que é... "
Eu escondia meu boletim, por que minha
paixão por estudar fazia minhas notas serem azuis, mas não queria adiantar esse
episódio pro meu irmão, que era aluno regular, e por vezes tinha notas abaixo
da média. Hoje formado na sua área, é profissional de destaque, e chefia
uma grande equipe em sua área. Você estava errado pai! E além de assobiar, ele
é multi-instrumentista, um dos melhores q já vi!
O tempo passava.Nas férias ele nunca
estava, viagem pra pesca: Pantanal, Mato Grosso, Goiás. Me pergunte o
mais longe q fui? Você vai rir...
Um grampo de cabelos com fios loiros e compridos, no banco da
caminhonete entrego pra minha mãe, que tem cabelo curto. Acho que ele nunca
soube que fui eu. Um batom vermelho na lavanderia de casa, entrego pra mãe, não
sei se sabe que fui eu. O telefonema do marido da amante: "Alô? Mãe é pra
você" . É o começo do fim.
A gente sempre escutava :"Eu nunca quis ter família"
"Eu não sirvo pra ter família". Ficamos com minha mãe. Podíamos
escolher. Eu tinha 13 anos.
Visitas pro meu pai: quarto fechado, namorada lá dentro, passei o
fim de semana vendo tv. Podia estar em casa com meus amigos... Meu irmão aos
poucos não quer mais ir. Eu continuo indo. Quero ter um pai. Já tenho 18
anos. Ele mora na casa de uma namorada bem de vida... “Pai posso fazer uma tatuagem? Uma flor no
braço?” Autorizada, fiz.
Tempo passou. Passei na faculdade, depois
de fazer o curso de moda, que ele achava que não servia pra nada, passei em
licenciatura em artes, em terceiro lugar, faculdade pública! Não em direito
como ele queria.
Engravidei, um amor que deu errado, me deu
uma filha linda! E ele tentou ser avô. Era tarde. Acho que minha filha sentiu a rejeição que ele
teve por mim enquanto eu estava grávida, e as asneiras que ele me disse quando
eu contei que estava. Ficou sem falar comigo até minha filha nascer. Depois a
aproximação foi difícil.
Passamos tempos bons, tenho saudades. Ele
se aposentou, disse que poderia se aposentar melhor se não tivesse que
ter a pago as pensões e plano de saúde pra mim e pro meu irmão. Passei em
concurso público, como ele queria, três empregos, stress, problemas emocionais,
avô materno com Alzheimer, eu sozinha de tudo, adoeci! Depressão, pânico,
bipolaridade, internada. Eele ia me visitar, me surpreendeu! Achei q íamos ter
uma chance. Recebi alta , ele sumiu. Fui atrás dos meus sonhos: fiz um curso de
tatuadora, virei tatuadora, fiz mais tatuagens. Comprei meu apartamento e ele
resolve me ajudar a me dar o piso, mas ai certo dia ele faz uma conta de
Facebook, me adiciona, acho legal, 10 minutos depois o inferno está instalado.
Ele começa a comentar pejorativamente e responder ofensivamente meus amigos.
Manda mensagem privadas ameaçando um deles, que me procura. Entro em contato
por telefone com meu pai. Ele estava bêbado. Me xinga e desliga o telefone na
minha cara. No outro dia manda recado pelo meu irmão para suspender o pagamento
do piso. 3 anos quase sem falar comigo, ignorando meus contatos, minhas
mensagens, saindo de casa quando eu ia visitá-lo pra não me encontrar. E essa
semana resolve assumir que desistiu de ser pai. Pensando bem acho mais honesto.
Acho que finalmente teve coragem de assumir algo que talvez nunca tenha
desejado. Acho que tentou algumas vezes. E eu sinto muito de verdade por este
sentimento não ser assim tão natural pra você como é pra mim . Hoje eu estou
vivendo um luto em vida. Por que aqui, eu tive usar dessas palavras pra me
ajudar a entender o que esta acontecendo. Mas meu amor por você nunca vai
morrer. Minhas lembranças do pai que cortava a melhor fatia de carne do
churrasco pra mim , da menininha que ficava sentada na sala junto com você no
escuro escutando música a noite, do beijo antes de dormir, do calor da sua mão
que cura, do seu jeito durão que me salvou no hospital mandando os médicos
fazerem os exames corretos, o seu sorriso, e o nosso jeito particular de fazer
contas, o cafuné que eu fazia na sua cabeça...e muitas, muitas outras coisas q
só eu sei.
Não há desculpa que você use, seja minha religião, minhas
tatuagens, ou qualquer das minhas escolhas que justifiquem o que você escolheu.
Sua escolha, é sua escolha. Por que eu não te fiz nada. Sempre e sempre só te
amei. Mas sempre e sempre foi tão difícil chegar perto de você.
Meu
pai nunca seguiu nenhuma religião. A primeira tatuagem que eu fiz ele
autorizou, e eu já tinha 20 anos. Me tornei tatuadora com 27 anos, e nessa
altura do campeonato eu já era uma mulher de 30 anos, com uma filha e carreira
bem estabelecida. Ou seja, essas justificativas eram furadas. Ele simplesmente
assumiu que não queria ser pai.
Meu pai é uma cara difícil. Não fala mais com ninguém da família dele. Ele se isolou do mundo. Vive com a namorada. Tomando suas doses de vodka. Já tentei mais de uma vez me reaproximar, mas só recebi insultos. Decidi então que a forma que eu tenho de amá-lo é respeitando as escolhas dele.
Meu pai é uma cara difícil. Não fala mais com ninguém da família dele. Ele se isolou do mundo. Vive com a namorada. Tomando suas doses de vodka. Já tentei mais de uma vez me reaproximar, mas só recebi insultos. Decidi então que a forma que eu tenho de amá-lo é respeitando as escolhas dele.